
A dura trajetória de Naiane Santos Silva, de 17 anos, chegou às mãos do juiz Luciano Ribeiro (1ª Vara Cível da Jequié), da Bahia, no início desse ano e o tocou profundamente. O processo pedia a emancipação da jovem que, abandonada pela família aos 11 anos, chegou a morar em um galinheiro às margens da BR-330 e se sustentava com doações de terceiros. Aos 17 anos, recebeu uma casa do programa “Minha Casa, Minha Vida”, mas foi impedida de assinar o contrato por ser menor de idade. O caso foi inédito nos 12 anos de carreira na magistratura de Luciano.
“Esse caso foi excepcional. É muito miséria, muito abandono… Foi a primeira vez que vi isso concretamente. Antes de tudo, somos humanos e eu sou pai também. Não tem como não se sensibilizar e se compadecer com um absurdo desse para o ser humano”, comentou. Leia a sentença na íntegra aqui.
Naiane nunca conviveu com o pai e foi expulsa de casa pela mãe aos 11 anos, quando teve um galinheiro, às da rodovia federal BR-330, como moradia. Aos 13 anos, foi morar com o companheiro em uma casa emprestada.
Segundo a assistente social Ariadini Dócio, do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Jequié, que a acompanha, a jovem engravidou pela primeira vez aos 16 anos e o bebê morreu pelas “mazelas da pobreza” – ela acredita que Naiane possa ter dormido sobre a criança enquanto dividiam a cama de solteiro. Na segunda gestação, ela não pode fazer os exames pré-natal por não ter documentos. A primeira ultrassonografia foi paga pela psicóloga que a acompanhava. Seu segundo filho é vivo, e a adolescente só teve o primeiro documento emitido em janeiro de 2017.
A jovem foi cadastrada no Ministério do Desenvolvimento Social e teve direito a prioridade na inscrição do “Minha Casa, Minha Vida” por ser mulher e chefe de família. No momento assinar o contrato do imóvel, a Caixa negou o direito por ser menor de idade. Hoje, Naiane vive apenas com recursos do Bolsa Família.
A assistente social procurou a Defensoria Pública em 2017, quando começou o processo pela emancipação judicial de Naiane. A Promotoria foi favorável à emancipação.
O magistrado quebrou o protocolo ao proferir parte da sentença em primeira pessoa. “Não sei explicar o motivo, mas o tempo todo, desde a audiência de instrução, pensei que isso exigia algo diferente. Deixei o pai e o ser humano Luciano escrever a fundamentação, e não o juiz. Além de julgar, eu desabafei”, argumentou o magistrado.
Ele analisou o Código Civil e disposições da Constituição Federal para emancipar Naiane em 16 de outubro. Ele escreveu: “Não me recordo em ter prolatado uma sentença com tanto sofrimento e com lágrimas de tristeza saltando dos meus olhos. Impossível não se compadecer com a situação da autora”.
Em outro trecho, desabafou: “’Tragicamente, este é o nosso Brasil, um país em que o Poder Público não entrega à sua juventude nenhum direito social, sabotando-lhes educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados. Como resultado desse jogo mais que injusto, perde Naiane, perdemos todos nós. Até quando?’
‘Mas vai, Naiane! Comprovou-se que a vida já te emancipou, e agora quem o faz é o Poder Judiciário, que lhe deseja paz e inteireza, para cuidar de si, sua família e irmãos, pois se você ainda não tem esses direitos, caráter, honra e brio já demonstrou que possui, de sobra. Como toda sertaneja, és uma forte!’”.
Luciano Ribeiro encontrou Naiane pela primeira vez depois da emancipação nesta terça-feira (23), depois de marcar encontro com a assistente social dela para os três lidarem com a repercussão do caso na mídia e nas pessoas, que se mobilizam para ajudá-la. “Apesar dos 17 anos, a vida tornou-a madura por imposição. Ela é tranquila e equilibrada, consciente do que deseja para seu futuro”, analisou.
O caso que o marcou por tanto tempo também o transformou: “Hoje, posso garantir que me sinto juiz de verdade”.
*Com informações do Bahia Notícias e da Defensoria Pública da Bahia