É inadmissível se apoiar em lei de anistia para impedir a punição de quem pratica graves violações dos direitos humanos. Assim entendeu a Corte Interamericana de Direitos Humanos ao determinar que o Estado brasileiro reabra a investigação dos responsáveis pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975, durante o regime militar.
O Brasil é obrigado a adotar “medidas idôneas” de apuração por meio de instituições próprias e ainda foi condenado a pagar US$ 40 mil para cada filho de Herzog e US$ 20 mil à viúva, por danos materiais e imateriais. A corte, vinculada à Organização dos Estados Americanos, afirma que vai acompanhar o cumprimento da decisão e exigir relatório em um ano. A decisão é de março, mas só foi divulgada nesta quarta-feira (4/7).
A CIDH disse que aplicar a Lei de Anistia (Lei 6.683/79) nesse tipo de caso viola “a letra e o espírito” da Convenção Americana de Direitos Humanos (ao qual o Brasil é signatário). Concluiu ainda que crimes contra a humanidade são considerados imprescritíveis pelo Direito Internacional, pois já havia tese “plenamente cristalizada no momento dos fatos, assim como na atualidade”.
Os julgadores entenderam que Herzog foi privado de sua liberdade, interrogado, torturado e assassinado em um contexto de ataques sistemáticos e generalizados contra civis considerados “opositores” do regime militar. Pela versão oficial do II Comando do Exército, o jornalista havia cometido suicídio.
Em 1975, a Justiça Militar fez uma investigação que confirmou a versão do suicídio. Para a corte interamericana, porém, o inquérito foi caracterizado como fraudulento. Em 1992, autoridades brasileiras chegaram a começar nova investigação, arquivada com base na Lei de Anistia.
Em 2007, após a publicação do relatório oficial da “Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos”, apresentou-se novo pedido de investigação ao Ministério Público Federal. O pedido foi arquivado quase dois anos depois pelo Poder Judiciário, baseada na lei de 1979, na tese de prescrição e no entendimento de que não havia tipificação dos crimes contra a humanidade na lei brasileira à época dos fatos.
Durante o processo perante a Corte Interamericana, o Brasil reconheceu que a conduta arbitrária do Estado de prisão, tortura e morte de Vladimir Herzog havia causado grande dor à família. A Advocacia-Geral da União alegou que os fatos se referem a contexto sócio-político distinto do atual, já corrigido pela Constituição Federal de 1988.
Em sua sentença, a Corte IDH determinou que os fatos ocorridos contra Vladimir Herzog devem ser considerados crime contra a humanidade, de acordo com a definição dada pelo Direito Internacional. O tribunal concluiu que o governo brasileiro não pode invocar a existência da figura da prescrição ou aplicar o princípio ne bis in idem, a lei de anistia ou qualquer outra disposição semelhante ou excludente de responsabilidade para escusar-se de seu dever de investigar e punir os responsáveis.
A Corte Interamericana concluiu que, devido à falta de investigação, bem como de julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de Vladimir Herzog, cometidos em um contexto de ataques sistemáticos e generalizados contra civis, o Brasil violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial de seus familiares.
Concluiu também que o Brasil descumpriu sua obrigação de adaptar sua legislação interna à Convenção Americana (Pacto de San José). Embora tenha reconhecido que o país moveu alguns esforços, para reparar a morte de Herzog, o tribunal disse que o Estado violou o direito de se conhecer a verdade e se recusou em apresentar informações e fornecer acesso aos arquivos militares da época dos fatos.
Nascido na Iugoslávia e diretor do telejornal Hora da Notícia, veiculado na época pela TV Cultura de São Paulo, Vladimir Herzog foi morto nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/Codi). Ele deixou a mulher Clarice, com os dois filhos do casal, Ivo e André, na época com 9 e 7 anos, respectivamente.
O caso teve grande repercussão e reuniu milhares de pessoas em ato ecumênico promovido na Catedral da Sé, celebrado pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor James Wright.
A morte foi divulgada pelo Exército como suicídio, mas a Comissão Nacional da Verdade declarou não haver “qualquer dúvida acerca das circunstâncias da morte de Vladimir Herzog, detido ilegalmente, torturado e assassinado por agentes do Estado”.
Em 2013, a família do jornalista conseguiu mudar atestado de óbito para registrar que a morte ocorreu em função de “lesões e maus tratos sofridos durante os interrogatórios em dependência do II Exército (DOI-CODI)”.
O Ministério Público Federal tenta responsabilizar agentes do regime militar, pelo menos desde 2012, mas nenhuma das 26 denúncias apresentadas teve sucesso. O Supremo Tribunal Federal já definiu que a Lei da Anistia vale para todos os crimes políticos e conexos entre 1961 e 1979 (ADPF 153). Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o STF ignorou as obrigações internacionais do Brasil, decorrentes do Direito Internacional.
A CIDH já condenou o Brasil pelo menos sete vezes: em 2010, mandou o Estado apurar e denunciar atos ilícitos durante o regime militar (caso Gomes Lund, sobre a Guerrilha do Araguaia).
Recentemente, a corte determinou a reabertura de investigações sobre duas chacinas ocorridas em 1994 e 1995 na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, durante operações policiais. Foi a primeira sentença internacional que condenou o Brasil por violência policial. Com informações da Assessoria de Imprensa da Corte Interamericana de Direitos Humanos.